Modelo híbrido viabiliza investimentos públicos e privados na malha ferroviária, que podem alcançar R$ 100 bilhões até 2035
Por Dauro Veras
A rede ferroviária brasileira passa por uma expansão sem precedentes na história recente, com um ciclo de investimentos estimado em aproximadamente R$ 100 bilhões até 2035. Esse impulso se deve em parte ao modelo híbrido adotado pelo governo para financiar os projetos, que combina concessões a empresas privadas com investimentos públicos diretos e renegociações de contratos. Inspirada no setor rodoviário, a nova Política Nacional de Outorgas Ferroviárias traz critérios objetivos para os aportes públicos, previsibilidade de leilões e mecanismos de partilha de riscos, de modo a dar mais segurança jurídica às partes.
"Historicamente, os recursos das outorgas iam para o Tesouro e não retornavam às ferrovias, mas a partir de 2025 eles passaram a ser aplicados no setor", ressalta o secretário-executivo do Ministério dos Transportes (MT), George Santoro. O governo propõe uma agenda de construção de ferrovias novas (greenfield) e de reconstrução de trechos ociosos, alinhada às boas práticas de sustentabilidade da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Desde 2024, um requisito para as autorizações ferroviárias é o relatório executivo do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA). As iniciativas com mais viabilidade e maturidade regulatória terão prioridade.
Nesse contexto, cinco grandes projetos ganham destaque: o Anel Ferroviário do Sudeste (EF 118); a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), base do traçado da Ferrovia Transcontinental; o Corredor Leste-Oeste (Fico-Fiol), conexão entre o Brasil Central e portos do Nordeste; a Transnordestina, que emprega quase sete mil trabalhadores e já tem dois terços concluídos; e a Ferrogrão, ligação entre Sinop (MT) e Miritituba (PA) pelo Arco Norte, que está sendo contestada em ação no Supremo Tribunal Federal (STF). Outras iniciativas incluem ramais da Ferrovia Norte-Sul, a Ferrovia do Pantanal (EF 267), o Corredor Ferroviário de Santa Catarina (EF 280) e seis projetos para trens de passageiros intercidades.
Na malha Sul, um grupo de trabalho discute a modelagem de um leilão em três lotes, para enfrentar o congestionamento do acesso de caminhões aos portos de Paranaguá (PR), São Francisco do Sul (SC) e Rio Grande (RS). Existem tratativas com o governo argentino para reativar a conexão entre Uruguaiana (RS) e Paso de los Libres. No Centro-Oeste, há também a possibilidade de ligar a malha brasileira à rede ferroviária boliviana. "Precisamos voltar a agenda pública para uma política de integração na América Latina", diz o secretário-executivo do MT.
Alguns dos projetos - como a Ferrogrão, a Fico e a Transnordestina - têm como foco o transporte da produção agrícola do interior até os portos. Tarefa especialmente relevante se for considerado que, nos próximos dez anos, o Brasil irá exportar 58,8 milhões de toneladas adicionais de grãos, conforme indica uma projeção da consultoria Macroinfra. De acordo com o diagnóstico, o escoamento crescente de cargas pelos portos do Arco Norte torna urgente a aceleração de investimentos em transportes, para evitar um "apagão logístico".
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Foto: Arte/Valor
O controverso projeto da Ferrogrão, corredor ferroviário de 976 quilômetros projetado para ligar Mato Grosso ao Pará, é contestado por organizações da sociedade civil e por especialistas, que alertam para impactos socioambientais e erros de planejamento.
Um dos críticos é o economista Claudio Frischtak, coordenador de um estudo sobre a logística do Arco Norte. Para ele, a ferrovia não é economicamente viável, pois, em cenários realistas, a taxa de retorno seria próxima de zero e exigiria aportes de mais de R$ 30 bilhões do Tesouro. Frischtak aponta falhas metodológicas e o risco de paralisação da BR-163 durante a execução da obra. Ele também identifica riscos de indução de desmatamento e conflitos em áreas protegidas.
Em sua visão, uma alternativa mais barata e sustentável seria a ferrovia entre Açailândia (MA) e Vila do Conde (PA), que passa por uma região já transformada por atividades humanas e chega a um porto mais resiliente a secas. Quando combinada com a Fico 1, que ligará Mara Rosa (GO) a Água Boa (MT), essa rota exigiria apenas R$ 4 bilhões em recursos públicos, segundo o estudo.
O advogado Melillo Dinis do Nascimento, que representa o Instituto Kabu, do povo kayapó mekrãgnoti, e a Rede Eclesial Panamazônica, enfatiza que o traçado da Ferrogrão avança sobre áreas de alta vulnerabilidade socioambiental. "O projeto não contempla diversas terras indígenas de sua área de influência e não faz a consulta livre, prévia e informada aos povos afetados, um direito previsto na Constituição Federal e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)", acrescenta.
Mas há outros questionamentos à Ferrogrão. "Não somos contra a Ferrogrão, mas o escoamento de grãos pelo porto de Santos é mais barato e competitivo", diz a vice-presidente de regulação da RumoCotação de Rumo, Natália Marcassa. Ela cita como desvantagens do projeto o regime de chuvas imprevisível no rio Tapajós e a impossibilidade de grandes navios graneleiros cruzarem o Canal do Panamá com destino aos mercados asiáticos. A Rumo, maior empresa de ferrovias do Brasil, aposta na rota de Santos e executa hoje a Ferrovia Estadual de Mato Grosso, que percorrerá 743 quilômetros entre Rondonópolis e Lucas do Rio Verde. Seus primeiros 160 quilômetros receberam aporte de R$ 5 bilhões e serão inaugurados em 2026.
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Barreto, da ANTF: o desafio é fazer com que o bom momento se alongue por décadas - Foto: Gabriel Reis/Valor
"Quem melhor que o mercado para avaliar se a Ferrogrão tem viabilidade econômica?", pergunta Santoro, do MT. "Se os investidores entenderem que o projeto é viável, vão colocar dinheiro nele, e se entenderem o contrário, não vão." Santoro admite que há grandes desafios, pois a concretização da obra depende da convergência de interesses de atores privados sobre a demanda de carga, mas lembra que o risco é mitigado por instrumentos contratuais.
Ele minimiza o risco de saturação da BR-163: "Acabamos de fazer um pré-acordo que garante investimentos significativos na melhoria da rodovia, com duplicação e construção de terceira faixa em Mato Grosso", informa. Quanto ao percurso ferroviário alternativo até Vila do Conde, o secretário-executivo conta que o governo já iniciou os estudos para o obra, mas entende que os projetos não se excluem e pretende estimular a concorrência para reduzir os custos do transporte.
Em resposta à crítica das organizações indígenas, Santoro ressalta que o governo pretende fazer todas as consultas prévias previstas na legislação, quando o projeto entrar na fase de licenciamento ambiental. "Não temos nenhum problema em discutir um acordo de compensação, no devido momento", afirma. "Estamos abertos ao debate."
De acordo com o EVTEA da Ferrogrão, elaborado pela EDLP sob supervisão do Ministério dos Transportes, o projeto custaria R$ 20 bilhões, com R$ 63 bilhões de benefício social. Entre os impactos positivos apontados estariam a redução de até 40% na emissão de CO2 e a economia anual de R$ 8 bilhões em custos logísticos. O estudo sustenta que o traçado não passa por nenhuma terra indígena e informa que cada trem poderá transportar 6,2 mil toneladas, retirando 422 caminhões da rodovia. O julgamento do STF sobre a Ferrogrão analisa se é constitucional a Lei nº 13.452/2017, que redefiniu os limites do Parque Nacional do Jamanxim (PA), pelo qual passaria a ferrovia. No início de outubro, o julgamento foi suspenso por pedido de vistas do ministro Flávio Dino.
Polêmicas sobre os traçados dos projetos à parte, os empresários do setor debatem o investimento privado recorde, que deve somar R$ 54 bilhões entre 2025 e 2027, e a intenção do governo de colocar mais dinheiro nas ferrovias. "Nosso desafio é fazer com que este bom momento se alongue por duas ou três décadas", diz o diretor-presidente da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Davi Barreto. Não é algo trivial, dado o histórico de descontinuidade das políticas públicas em função das mudanças de governo.
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Tomelin, da Ultracargo: competitividade das ferrovias pode aumentar com investimentos em soluções multimodais - Foto: Ana Paula Paiva/Valor
Em um estudo sobre as deficiências e potenciais do setor, o diretor da FGV Transportes, Marcus Quintella, e o pesquisador José Eduardo Castello Branco assinalam que o transporte ferroviário de cargas no Brasil continua limitado por desigualdades regulatórias e pela falta de integração entre modais. Os autores defendem liberdade tarifária para as ferrovias, mais equilíbrio concorrencial com o transporte rodoviário e políticas de incentivo à interoperabilidade.
Para o presidente da empresa de logística Ultracargo, Fulvius Tomelin, a escassez de espaço e a burocracia são desafios comuns em projetos de grande porte, mas podem ser superados com planejamento de longo prazo e diálogo próximo com autoridades e comunidades. Já a baixa competitividade do modal ferroviário em relação ao rodoviário exige investimento em soluções multimodais que combinem ferrovia, porto e rodovia. "É o que temos feito na Ultracargo", conta. "Em Paulínia, o desvio ferroviário da Opla, entregue em junho, cria um corredor logístico eficiente entre o Sudeste e o Centro-Oeste, facilitando o escoamento de etanol de milho e o envio de derivados de petróleo ao agronegócio."
Outra aposta do governo para desenvolver o setor é a autorização ferroviária, um regime de outorga que permite às empresas construir e operar trilhos em regime privado. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) já firmou 45 contratos de adesão, mas apenas dois avançaram para a fase preliminar de procedimentos ambientais e legais, como desapropriações. Embora o novo modelo seja elogiado por especialistas, há críticas aos projetos autorizados no governo anterior que, por sua fragilidade, não saíram do papel.
Em nota, a ANTT informa que foca em dar previsibilidade e segurança regulatória para o avanço responsável dos empreendimentos e cita como principais desafios o licenciamento ambiental complexo, as anuências municipais, a engenharia básica e as interfaces operacionais com a malha existente, além da estruturação financeira de longo prazo pelos proponentes.
"As autorizações abrem caminho para um novo capítulo no transporte de passageiros", diz o presidente da Associação Brasileira das Ferrovias Autorizadas (Abrafa) e presidente da Petrocity, José Roberto Barbosa da Silva. Para ele, o diferencial dessa modalidade de outorga é a capacidade de interiorizar a economia e avançar na mobilidade entre centros urbanos, criando oportunidades para a implantação de trens regionais e de média distância.
No entendimento da diretora de relações governamentais da VLI Logística, Joyce Andrews, o mecanismo de aporte pode ser um indutor para o fortalecimento das autorizações. A empresa opera a concessão da Ferrovia Centro-Atlântica, renovada até 2056 com previsão de R$ 30 bilhões em investimentos, e partes da Norte-Sul.
Valor
https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/revista-infraestrutura-e-logistica/noticia/2025/10/31/ferrovias-avancam-com-projetos-estrategicos-de-grande-escala.ghtml
                      
                                    
								


